domingo, 12 de fevereiro de 2017

Por uma ciência mais transparente

Pense bem.
Se você quer ser um grande pesquisador, que caminhos pode seguir? Como deve escolher seus temas, seus companheiros de pesquisa, seu métodos? Quais são os erros que você vai cometer, inevitavelmente? Quais serão as barreiras do processo científico?
Você sabe?
Eu também não.

E, infelizmente, os trabalhos acadêmicos parecem nos contar muito pouco. Quando lemos um artigo sobre a construção de um novo algoritmo, o vislumbre de uma conexão entre dois aspectos ou uma nova percepção sobre um problema, sabemos pouco sobre a trajetória que levou o pesquisador até ali. Constrói-se a impressão de que todo aquele trabalho já apareceu pronto, como que fruto da inspiração divina. O que está longe da verdade, na imensa maioria dos casos.

Penso que todo trabalho deveria ter um capítulo que descrevesse a trajetória de sua construção: os erros, os acertos, os problemas enfrentados, as escolhas, os dilemas. Não somente uma seção que apresentasse a metodologia utilizada, mas algo que deixasse transparecer todo o esforço envolvido na elaboração daquele estudo. E se você acha que a trajetória de uma pesquisa quantitativa é linear, sinto dizer que a realidade parece ser bem diferente.

É claro que algo assim tomaria espaço, por vezes tão escasso nos formatos comuns de artigos acadêmicos. Que o colocássemos, então, em nossas teses e dissertações, pelo menos. E que lutássemos para que houvesse uma categoria de publicação chamada "trajetória de pesquisa" ou algo assim.

Todos nós erramos na condução de nossos trabalhos. Todos nós elaboramos hipóteses que se provam falhas, aplicamos métodos que não trazem os resultados que esperamos, conduzimos experimentos que não foram bem elaborados. Em vez de manter silêncio e guardar segredos nos laboratórios e salas de pesquisa, porque não se expor? Porque não fornecer esse depoimento encorajador para os demais, dizendo que "sim, é difícil, sim, eu errei...mas consegui chegar até aqui"? Porque não dizer que o rei está nu?

É claro que é empolgante e inspirador ler um trabalho brilhante. Mas ainda mais inspirador seria conhecer todo o processo que deu origem ao trabalho, com erros, desvios e acertos. Conhecer a humanidade por trás daquele trabalho. Não só o caminho, a história bonita em que tudo funciona e A leva até B. E sim, aquela história completa, autobiográfica, incerta e tortuosa. Isso não diminui (ou não deveria diminuir) o mérito do trabalho.

No momento em que não deixamos registros de nossa jornada até chegar ao resultado final do trabalho, estamos dificultando o caminho para aqueles que vêm depois de nós. Estamos fazendo nosso trabalho parecer perfeito e inatingível. E então, vamos ensinar tal postura e exigir de outros a mesma falta de transparência que apresentamos. E vamos rechaçar quem apresentar tal sinceridade.

Lembro de um episódio de trabalho em que eu falei numa reunião que não estava conseguindo completar determinada tarefa. Fui olhada com desagrado e pena por pessoas de outros departamentos, que então desfilaram intermináveis conselhos do que eu deveria fazer. Nenhum deles me parecia aplicável...e saí da reunião me sentindo frustrada e incompetente. Qual não foi minha surpresa quando um colega me chamou de lado e me disse, como quem conta um grande segredo, que ninguém estava fazendo aquilo, mas que burlavam o sistema para fazer parecer que estavam. Eu, sem querer, havia quebrado o pacto de silêncio.

Sinto que mantemos esse pacto diariamente nas bancas, comissões julgadoras, orientações e aulas pela ciência afora. Mostramos o lado "limpo" da nossa pesquisa para o mundo. E acho que isso tem que mudar.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Exemplo de pesquisa qualitativa (entrevista e análise)

No post anterior eu dei um exemplo de como não fazer entrevista qualitativa.

E como seria uma entrevista qualitativa de verdade?

Bom...entrevistas qualitativas costumam ser longas. Quanto mais a pessoa fala, melhor. Por isso, devem ser evitadas perguntas que possam ser respondidas só com "sim" e "não".

Para exemplificar, criei um trecho fictício de entrevista, baseada no exemplo 1, do post anterior.


Problema de pesquisa: Como a TI contribui para os microempreendedores?
Entrevistada: Dona Maria

[...]
- "Dona Maria, como surgiu essa ideia de implantar esse sistema?"
- "Ah, minha filha, a ideia de botar esse sistema aqui foi do meu filho. Ele tá fazendo um curso de computador e chegou dizendo que se botasse ia melhorar. Aí eu botei. Quando chegou, foi ele mesmo que instalou e botou pra funcionar. Aí no começo eu tava meio teimosa, não queria usar...mas aí ele foi me ensinando e eu aprendi. Aí hoje todo pedido que a gente faz a gente bota aí no sistema"

- "Se ele não estivesse por aqui, a senhora teria colocado o sistema?"
- "Ah, não tinha não! Não tinha não porque eu não sabia mexer...fora que se fosse pra chamar outra pessoa, eu ia ter que pagar e aqui é desse jeito que você tá vendo: assando e comendo..."

- "Entendo...Hoje a senhora consegue imaginar isso aqui sem esse sistema?"
- "Consigo, minha filha. Mas com ele é melhor, né? Porque no fim do mês eu já tenho tudo certinho pro contador...porque antes era uma trabalheira...eu tinha que ficar inventando até, porque eu não achava as coisas..."

- "A senhora vê outras vantagens, além dessa?"
- "Ah, também é bom que eu sei o quanto deu pra apurar no mês"

- "E como isso lhe ajuda?"
- "Ah, minha filha, você sabe, né?...É que as conta é tudo misturada, daqui e de casa...aí, sabendo quanto deu aqui, sei quanto dá pra fazer de feira"
[...]



E aí?
Consegue ver como a TI ajuda o microempreendedor?

A gente poderia extrair 475293 coisas dessa entrevista:
- a necessidade de ter alguém externo que dê a ideia de adotar a TI, já que o microempreendedor nem sempre tem essa visão
- a questão dos custos da TI, que podem ser impeditivos para o microempreendedor
- a questão da universalização do ensino superior: e se o filho da D. Maria não tivesse estudando?
...

E por aí vai.
Por isso que a gente precisa de uma pergunta de pesquisa: pra guiar a análise. Senão a gente passa a vida toda "futucando" aí...Nada impediria que a gente explorasse outros aspectos, mas para começar, vamos ficar só na questão de pesquisa.

A d. Maria fala:

"no fim do mês eu já tenho tudo certinho pro contador...porque antes [do sistema] era uma trabalheira...eu tinha que ficar inventando até, porque eu não achava as coisas..."
Eu não sei pra vocês...pra mim, olhando por alto, parece que a TI ajuda no cumprimento das obrigações legais.

E não é só isso:

"as conta é tudo misturada, daqui e de casa...aí, sabendo quanto deu aqui, sei quanto dá pra fazer de feira"
Ou seja...ajuda na gestão financeira da empresa, o que também ajuda no orçamento familiar, já que nesse contexto, as coisas costumam estar misturadas.

Então, nessa análise eu já teria duas respostas para a pergunta de pesquisa:
  • Cumprimento de obrigações legais: A TI ajuda o MEI a cumprir as obrigações legais, e até reduz a incidência de erros e fraudes involuntárias na prestação de contas ("eu tinha que ficar inventando até")
  • Controle Financeiro: a TI ajuda a melhorar o controle financeiro da empresa e por conseguinte, o controle financeiro familiar.

Eu também poderia detalhar essa questão da TI e indicar o tipo de sistema ao qual ela se referiu. Aí no fim, eu poderia associar o tipo de tecnologia às respectivas contribuições.

Por que eu disse "teria duas respostas"? Porque nos desenhos de pesquisa qualitativos que envolvem várias pessoas (caso mais comum, como é o exemplo 1) os resultados de pesquisa normalmente são aquelas questões mencionadas por várias pessoas. Mesmo quando só há um sujeito investigado, é recomendado o uso de outras fontes para dar mais solidez aos resultados da pesquisa.
Assim, se os próximos entrevistados também falarem essas coisas, vai se consolidando um resultado de pesquisa.

E aí? Partiu pesquisa?

---

Em tempo: sou iniciante na pesquisa qualitativa, leitora ávida de Merriam e Patton. Se eu falei besteira ou se tem algum paradigma em que nada disso aí vale, me conta. =D

O que é entrevista qualitativa e o que não é

Fazer pesquisa qualitativa em alguns ambientes é um desafio. Embora sua importância já seja ponto pacífico nas ciências humanas, quem vive entre os dois mundos (como eu), às vezes passa apuro para explicar que o que está fazendo é pesquisa científica sim.
Mas eu entendo o preconceito que vejo por aí: tem muita pesquisa qualitativa com problemas.

Exemplo: a pessoa quer investigar como a TI contribui para o microempreendedor. Aí o que faz? Um monte de entrevistas perguntando coisas como: "na sua opinião (porque é quali, oras! Tudo é na visão da pessoa #ironia), qual é a contribuição da TI para o seu negócio?". Aí seleciona as respostas que mais apareceram, vai lá e escreve os resultados. E põe lá que "realizou um estudo qualitativo".

Desculpa. Isso é jornalismo. Não é pesquisa qualitativa. (na minha opinião...mua ha ha).

Até onde aprendi, para responder à pergunta "como a TI contribui para o empreendedor" de modo qualitativo eu poderia fazer alguma das opções a seguir:
  1. Entrevistar microempreendedores. Primeiro faria perguntas para identificar o que há de TI na organização. Depois perguntar de onde veio a ideia de adotar a tecnologia, como foi a implantação, como ele usa aquilo. Depois perguntar, p. ex, se a pessoa consegue imaginar a empresa sem aquilo.
  2. Primeiro observar uma microempresa funcionando e identificar que tarefas envolvem TI. Depois pedir que as pessoas me falassem daquelas tarefas, pra que eu entendesse a importância delas para o negócio. E aí fazer a conexão TI-Negócio.
  3. Acompanhar uma organização que está adotando um sistema até que ele entrasse em operação, para indicar como ela mudou.
  4. (insira seu desenho de pesquisa favorito aqui).
Em todo caso, no processo de análise dos dados, eu iria buscando as conexões entre a TI, as razões para adotá-la e como as coisas mudaram depois que ela chegou. E jamais perguntar o que é que a galera "acha" que é.

Nunca viu uma entrevista nem uma análise qualitativa de perto?

Se aperreia não: no próximo post eu mostro um exemplo, baseado na opção 1. Vamos fazer algo como análise de conteúdo. Mas tem váaaarios tipo de análise qualitativa. Por enquanto só captei a ideia dessa...rss....